Mark

E os mineiros vieram salvar a moral anti-Bolsonaro do SPFW
:

LED & RONALDO FRAGA
Outubro 2018


Muito complicado falar (e pensar) sobre moda quando o país está em frangalhos políticos. Ainda mais quando a - ainda - maior semana de desfiles acontece na semana exatamente anterior à grande eleição presidencial que pode acabar com a década. Um timing, digamos, impecável.

Mas é exatamente por conta desse timing que poderia se esperar um posicionamento necessário de uma classe movida pela criatividade e pela libertação de costumes, calcada no pensamento de que qualquer manifestação artística, ainda que industrial, é, em essência, política.

Não foi o que se viu nos primeiros dois dias e meio de SPFW.

O próprio evento evitou se posicionar contra ou a favor de qualquer movimento da classe política que, numa visão extrema, poderia até restringir sua existência - mas esperadamente, em tempos de rupturas empresariais por conta de espectros políticos, tentando não restringir o fluxo de dinheiro de possíveis patrocinadores (mesmo que um dos atuais tenha colocado um dispensável jipe militar na decoração do lugar).

Daí constrói-se uma bolha de criativos e marcas que soam como se em cima do muro, ignorando a consciência de classe e desfilando como se houvesse amanhã (coisa que talvez não haja) com coleções mornas, repisando suas já conhecidas visões estéticas, e sem cumprir o papel social da moda que poderia (deveria?) ser o de refletir sobre a existência do contexto em que está inserida. Oskar Metsavaht, por exemplo, definiu sua coleção como “política lato sensu” - jeito muito elegante de dizer que está focando no macro (no caso, a salvação dos oceanos) para evitar tocar no micro (no caso, a da nossa pele).

Na prática o que se enxergava era muita gente se esforçando para fugir da discussão pública, sem levantar bandeiras (seja para um lado, seja para o outro) ou exibir um bottom discreto sequer. Tanto na passarela, afrouxada, quanto no público, que ainda age como se estivesse num desfile parisiense dos anos 1950. Como diz o meme, “everything is fine”.

A salvação, ufa, veio por conta dos mineiros no final do terceiro dia de desfiles: Célio Dias, da LED, e Ronaldo Fraga. Um novato e um decano, ambos com vocação para posicionamentos politizados.

Goste-se ou não, Ronaldo ainda é a grande antena das movimentações sociais dentro do SPFW - e fora dele, ativista de Instagram ferrenho contra qualquer cerceamento de liberdade de expressão.

Desta vez, ele montou uma mesa de banquete coletiva e solidária, refletindo sobre a (in) tolerância da convivência entre árabes e judeus para metaforizar sobre a crescente dificuldade de coexistência entre bolsonaristas obtusos e humanistas em geral.
Charles Naseh
Ronaldo tem no seu manifesto da vez uma visita a Tel Aviv, centro cultural israelense que poderia ser epicentro da disputa pela Palestina - e onde, na sua visão, os dois povos e religiões convivem pacificamente. E usa isso para alertar que a guerra da intolerância está no nosso quintal (como todos que não são homem-branco-hetero-de-classe-média já sabemos faz tempo).

A coleção, toda em tons de azul, foca menos nas roupas e mais na simbologia: das estrelas de Davi recortadas, dos nomes de cristãos novos (os judeus que trocaram de sobrenomes na Península Ibérica para fugir da perseguição no século 15) nas saias, dos beijos entre homossexuais escancarados em frente às câmeras (e ovacionados pois, pobres trópicos, um beijo gay ainda não pode ser apenas um beijo), dos acessórios feitos com pregos, da mesa onde todos esses personagens se juntaram para compartilhar de comida e vinho e dar-se as mãos em uma ciranda de afeto.
Agência Fotosite
Mas, principalmente, na simbologia solitária do modelo negro com o braço apoiado em uma tipoia feita com uma camiseta da seleção de futebol - uma imagem essencial para mostrar que o verdadeiro Brasil, e não o representado pela classe média mesquinha & raivosa, está (irremediavelmente?) quebrado.
Charles Naseh
Ou talvez nem tanto?

Daí que a ideia se completa com um uivo de resistência da LED de Célio - diamante bruto dentro da fraca seleção do Top 5, desfile coletivo fomentado pelo Sebrae em parceria com a In-Mod dentro do SPFW.

Desde que apareceu em Belo Horizonte, a LED tem se posicionado como marca essencialmente ativista e necessária, sempre na defesa da existência das bichas (e aqui nem cabem termos politicamente corretos; é bicha mesmo, cada dia um level a mais, igual Pokémon).

No terceiro desfile dentro do SPFW, Célio jogou na cara do público a sua “bicha arretada”, querendo desconstruir a tal virilidade clichê do macho nordestino - e construindo uma narrativa coerente com nossa época de eleição nacional, que bota em confronto o Sul conservador contra o Nordeste progressista que pode salvar a pátria.



Charles Naseh
Essas bichas pré-pós-apocalípticas vêm cobertas de jeans, cores fortes, chifres desenhados no plástico e construções misturas de tricô e crochê, pra mostrar que não estão pra brincadeira. São viadinhos conscientes da sua luta, da sua existência política, da coragem de expor sua realidade na rua.

E a coragem de Célio que, mesmo sem fazer parte do line-up oficial, mostra que a nova geracão e suas verdades - em contraste com a clássica, cheia de amarras morais e comerciais - ainda pode dar um alento e mostrar realmente a que veio. 

Entre a tipoia da CBF e a gay com tanguinha de crochê, a passarela do SPFW saiu do torpor. E ficou no ar a frase da camiseta do estilista, o único por enquanto a se posicionar claramente anti-Bolsonaro:

Bichas, resistam!


(Moda, também)

!

23.10.2018

Agência Fotosite