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Na corrida pela normalidade, a moda vai resvalando no negacionismo
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Verão 2021

Na segunda-feira (05.10), Donald Trump chocou o planeta (risos) ao sair do hospital, onde passou dias internado, e tirar a sua máscara ao chegar no pórtico da Casa Branca. Menos de 24 horas depois, no encerramento das semanas de moda internacionais, Nicolas Ghesquière foi aplaudido ao sair do backstage e tirar a sua máscara para agradecer às palmas no desfile da Louis Vuitton, em Paris.

O primeiro, definitivamente infectado pelo coronavírus, se esforçava em criar um storytelling de muita valentia em plena tentativa de reeleição. O segundo, que nós torcemos para se manter saudável e não tem grandes preocupações com seu cargo de diretor criativo, não pôde ficar sem mostrar o rostinho bonito para dar seu “merci” à audiência phygital. Mas qual a diferença entre os dois e por que o primeiro é detonado e o segundo, passa como se tudo bem? 
Comparando-se as cenas, o efeito semiótico soa-me semelhante: ambos parecem mostrar que vivem numa bolha de fantasia, que não precisa dar conta de uma pandemia de escala mundial e ainda fora do controle. Ambos tiram suas máscaras apenas por razões de autoimagem. Trump, obviamente, representa um ideal personalista e egoísta que mede consequências sob um prisma muito próprio; enquanto Ghesquière confia num ambiente cheio de regulações. O americano executou um teatro meticuloso, o francês talvez tenha feito sem planejar. Mas, para quem vê de fora, sem contexto, o descuido no trato pode soar semelhante.

E, na moda, puxa uma questão que esteve no ar durante este último mês: qual a mensagem que os grandes players da moda (e não só a figura deste estilista em específico, não me entenda mal) parecem querer passar com os desfiles que não deixaram de acontecer?

Claro, todos bravatearam os seus infinitos protocolos de segurança, com os envolvidos testados exaustivamente, dos castings à provas de roupa à fila final, muitos EPIs e regras da OMS e siglas mil, aliadas à audiência presencial diminuída (mas nem de longe diminuta). Boa parte das marcas, mui corretamente, trocou os grandes shows por vídeos produzidos em baixa escala de equipe ou outras formas alternativas, repensando formas de trabalho e de divulgação, de acordo com o respeito ao contexto pandêmico que atravessamos este ano inteiro. 

Mas na imagem final da passarela, trends e silhuetas à parte, onde foi parar a mínima conexão com a realidade? A moda desencanou de vez de refletir sobre o mundo lá/aqui fora? A “influência do streetwear” caricata será o ápice final do crossover entre as calçadas e as semanas de desfiles?

Considero especialmente sintomático que quase ninguém tenha colocado máscaras de proteção na passarela. Não quero dizer, veja, que a indústria deva cair na armadilha da “glamourização” gratuita & cretina do uso do EPI, com versões couture do acessório. Isso a gente sabe que já aconteceu e acontece nas butiques, tanto aqui quanto lá, prontamente entregues aos fashion addicts.

Mas para uma indústria que vem se esforçando tanto para não perder os parcos vínculos de interesse que ainda mantém com os seres humanos normais em quarentena, a imagem que fica é que… está tudo bem? A tendência para o verão 2021 é um emoji feliz e vacinado, de roupas novas — mas não se sabe muito bem de onde tiraram isso.

O limiar entre a cretinização da pandemia e a naturalização do comportamento de proteção é, sim, bem tênue neste caso. Porém, a alta moda resolveu se manter no caminho mais antigo e mais seguro (para ela) do “vamos fingir que vivemos num mundo à parte que vocês aí fora desejam entrar”. Será que é assim mesmo? Eu arrisco dizer que não.
Divulgação
Como sempre, há exceções. A Schiaparelli refletiu o momento em uma construção d’ouro, que abre este texto. Galliano “asfixiou” com tule seu casting da Maison Margiela, assim como Thom Browne e a Kenzo — que não serve para nada, mas pelo menos é uma referência clara à necessidade de uma barreira contra a pandemia. Balenciaga e Marni, ambas se mostrando na rua, puxaram para cima as golas à guisa de máscara enquanto Rick Owens colocou as máscaras nas circustâncias do seu mundo estético. Mesma coisa da queridinha-do-momento Marine Serre e de Christian Siriano, do turco Bora Aksu, do malinês XulyBët, do japonês Takahiro Miyashita e da estreia de Reuben Selby. Para um universo de quase 300 coleções… é um número ridículo de exemplos.

(Inclusive, pra que tanta roupa? Pra que tanto desfile? Pra que tantas entradas? Pra que etc)

O grande modelo prático de como a imagem pode soar contextualizada, sem perder a ternura, ficou nas mãos da Eckhaus Latta. Sem entrar no mérito da moda proposta, todas as pessoas que desfilaram estavam de rosto coberto — algumas com máscara de tecido, outras com máscaras de farmácia, outras com N95. Mas todas, frise-se, cobertas. Tanto para proteção no momento do show quanto para mostrar que no futuro, sim, o cuidado continuará no seu armário como item mandatório.

Já é a segunda temporada internacional de desfiles que acontece durante a pandemia. Na primeira, estávamos todos mergulhados em diferentes níveis de confusão, muitos jurando (e eu me incluo aqui) que tudo seria revisto e o mundo melhoraria. Agora, todos queremos emergir ao normal. Mas que normal é esse que esses desfiles estão se empenhando para ignorar? A realidade virou de cabeça para baixo e nós estamos num esforço para que tudo continue igual ao que era antes?

A indústria da moda já naturalizou tantas coisas daninhas por tanto tempo — da exclusão racial ao heroin chic — que não me parece fazer sentido abrir mão do seu papel social e da sua potência educativa logo neste momento em que Trumps e Bolsonaros propagandeiam que o absurdo em que vivemos não é tão absurdo assim. A comunicação está dispersa por fake news e fake cliques, fazendo com que aquela máxima do "uma imagem vale mais do que mil palavras" se torne mais forte e mais rápida. Diabos, eu mesmo comecei este texto colocando Trump e Ghesquière no mesmo patamar imagético, pense que loucura. 

Não vamos parar de usar máscaras tão cedo. Não temos vacina, a OMS não deixou, o Átila tampouco. Já ultrapassamos a marca de um milhão de mortos. Será que não é o caso de o mundinho se atinar à narrativa da realidade - nos desfiles, editoriais, revistas, campanhas -, a mesma que fez com que termômetros aparecessem nas lojas todas?

Há uma grande e perigosa diferença entre escapismo e negacionismo. Se as máscaras são usadas apenas fora dos holofotes e a pandemia vai se tornando um assunto que fica para escanteio, a moda corre o risco de ir se aliando, mesmo que sem querer, ao segundo caminho.
 

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07.10.2020