Sobre Ernesto Neto na Pinacoteca e como a arte e o olhar pra dentro podem nos ajudar a sobreviver aos anos 2020
:
SOPROMarço 2019
—
Isto é, se você acreditar nela.
Cura Bra Cura Té. A obra monumental faz parte de Sopro, retrospectiva da carreira de Ernesto Neto, com suas construções que envolvem especiarias, limalhas de ferro, poliamidas e equilíbrios, dos anos 1980 para cá.
Eu também estou doente. E esta semana confrontei uma gripe para dar conta de um desses momentos que não acontecem sempre: um papo com Neto em visita guiada pré-abertura da exposição.
“Ele fala bastante”, alertaram-me. E com razão: a primeira intervenção se estendeu por duas horas, num indo e vindo de teorias e causos e des-serenidades e músicas que transformaram o papo em quase performance.
A obra de Neto sempre teve um quê biológico-imersivo: as meias recheadas de bolinhas de chumbo, os pif-paf-pofs de especiarias, as construções que convidam o público a se confortar em balanços de crochê ou meditar sob uma árvore vermelha recendendo a sálvia e cravo e louro. Tudo, inclusive, espalhado pelo prédio da Pinacoteca nestes próximos meses.
Mas o momento mais importante é a Cura, a árvore, o ápice de um artista que vem se voltando cada vez mais para o interior, às tradições, ao inconcreto. É também uma ação de escala - se antes você tinha a opção de apenas olhar a obra externamente, no livre arbítrio de adentrá-la ou não, agora isso acabou. O gigante está ali sobre e sob ti, ao teu redor, o interior da obra é você.
E isso tem muito a ver com essa fase - moral & social & espiritual - que estamos vivendo desde 2012. Não há mais a opção de se manter alheio, a situação já te engolfou para dentro e você é ela.
“As coisas estão em eterno estado de acontecimento, atrás de um equilíbrio”, o artista reflete, meias vermelhas pisando no chão azul da Cura, e falando sobre a construção e a desconstrução do próprio trabalho.
Esta, diz, é a missão necessária para sobreviver aos próximos anos: (des)construirmo-nos. Tudo o que está acontecendo é reflexo do medo e raiva do sistema dominante, “uma reação natural contra o poder do amor”. Para Neto, diria que o segredo é um apenas: viver.
“Na nossa cultura fala-se muito sobre a morte, diviniza-se a morte e se esquece da vida, não se fala da alegria do viver. O mundo tem poesia. E a gente está embarreirando a poesia de viver”
Ele aponta que nossos grandes problemas são simbolizados pelo Tronco - aquele mesmo onde os africanos escravizados eram castigados há pouquíssimo tempo, que pode simbolizar imaterialmente tudo o que atrapalha nossa moral: do capitalismo opressor ao Olavo de Carvalho, da depressão maciça contemporânea à glorificação da bad vibe como estampa de camiseta em fast fashion.
Estamos envenenados, ele afirma convicto, por culpa do Tronco - que está ali, no centro da obra, como elemento dissonante. “A natureza do homem é ser tranquilo, se ele não está… tem algo muito errado”. E a cura - palavra chave da vez e, arrisco, da próxima década inteira - vem das nossas ancestralidades.
Na noite anterior, estive no show do Kamasi Washington - jazzista millennial californiano, que toca um saxofone tenor (outro sopro) rasgado filhote direto de John Coltrane. E que, assim como ele, encarna uma figura quase divinatória, de acordo com os movimentos pretos da nossa época.
Mas a revolução aqui, apesar de cantada em músicas como Fists of Fury (“we will no longer ask for justice / instead we will take our retribution”), vem por conta do amor. “Não importa a cor da sua pele, nós somos iguais e eu te amo”, Kamasi pregou em algum momento da apresentação. “A gente precisa pensar nas nossas semelhanças”, ecoaria Neto na manhã seguinte.
Se a ancestralidade do músico é óbvia e legítima (#lugardefala), a do artista plástico (branco-classe-média-do-Leblon) é difusa no discurso, não por isso menos legítimo.
Nós brasileiros, ele explica, estamos numa situação que nos trás grande vantagem e desvantagem. Não somos europeus, não precisamos carregar tal karma negativo acumulado por séculos. Mas fomos colonizados por eles - à força -, numa miscigenação que só faz o tal Tronco ficar mais forte e raivoso.
Por outro lado, essa mistura de origens desemboca num açude de referências que é nosso grande mérito, “uma graça muito especial”: a mescla de culturas africanas e indígenas (e, vá lá, europeias) que dão numa sabedoria única, milenar, pé no chão, num contato com a natureza que só pode nos libertar e… curar.
Há alguns anos, Neto tem frequentado e absorvido os ensinamentos dos Huni Kuin, comunidade indígena do Acre, que reforçou muito sua espiritualidade e suas visões de vida. O que reflete também, é claro, na sua obra: todas as ideias da humanidade como um ser coletivo dentro de um planeta/organismo, reforçadas pela cultura daquele povo, estão espalhadas dentro das suas construções arvorescas colossais recentes - tanto esta Cura como a Gaia Mother Tree, apresentada em Zurique em 2018.
A simbologia aqui (entre tantas) fica por conta da gota do primeiro parágrafo, que engole o Tronco, o falo envernizado e agressivo, fazendo-o desaparecer - e levando com ele todas as questões que puxam a moral do país para baixo - ao mesmo tempo em que, inevitável, tem sua serenidade orgânica deformada.
É sexual (o que não é?), é agressividade de tez poética, é a força do feminino engolfando a sisudez bruta do patriarcado que está no poder desde sempre.
“Para querer a cura, a gente tem que se libertar dessas raizes históricas. É doloroso mesmo, é essa fase que estamos passando", diz, prometendo a destruição do tronco em fases ritualísticas até o fim da exposição, antes de clamar: "busquemos as culturas indígenas e afro para um exercício de cura, de equilíbrio”.
“Renascer é necessário”, afinal, é o mote dessa conversa toda. Assim como é mote apropriado pela sensacional cineasta anglo-nigeriana Jenn Nkiru - amiga de Kamasi e que tinha vídeo com esse título exposto no MASP até a semana passada (e que você deveria assistir).
No museu, Jenn participou de conversa poucos dias atrás e mandou a seguinte linha de pensamento: “Eu estou mais interessada em entender minha liberdade do que fazer outras pessoas entenderem minha humanidade”.
O assunto de Jenn, claro, é a diáspora afro, a luta da identidade deles e tudo o que envolve essa situação. Mas, dadas as devidas proporções dos privilégios e dos contextos, pode ser também a de todos nós.
É esse, talvez, o segredo. Assim como nas invocações de Kamasi, assim como nas divagações de Ernesto. É uma guerra branda, ainda que eficiente. É a busca da paz exterior pela paz interior. "Calma, cara!", diz o artista, numa frase que inclusive poderia ser slogan deste site: "Não fique procurando o novo a todo momento. Procure a tranquilidade que o novo vai aparecer".
Você pode achar o papo de Ernesto talvez um pouco ripongo-zona-sul demais. Talvez até um pouco simplista para um 2019 tão cheio de nuances sociais urgentes. Mas há de se dizer que não soa com razão?
Estamos todos, vejo ao meu redor e aqui dentro, em busca de uma espiritualidade que nos mova melhor, um terreiro, uns cristais, uma alimentação menos pasteurizada, um creme mais natural, uma rede social a menos, um grupo de pessoas que se ouçam e que se apoiem; seja o que for preciso para aplacar essa ansiedade que nos rodeia. E não é de hoje.
O mundo e o Brasil enfrentam uma gripe chata, meta-parafraseando Mario de Andrade, (desculpe-me), num sentimento meio catarrento. Respira-se mal, a cabeça pesa, o corpo dói e a vitalidade desaparece.
Mas há soluções que agridem menos e, como diz Ernesto, "a cultura nos separa, mas a natureza nos une". Não sei você aí, mas eu já troquei o paracetamol 400 mg pelo chá de cúrcuma. E vou bem feliz com isso.
.
29.03.2019
-
O papo com Ernesto Neto rolou a convite da Havaianas, patrocinadora da exposição.