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Uma entrevista:
Fábia Bercsek. 

Não é qualquer estilista que sugere sentar na mesa da conveniência de um posto de gasolina qualquer para discutir seu trabalho. Isso diz muito sobre Fábia Bercsek, lumiar da moda dos anos 2000 que abre a 56ª Casa de Criadores com um grande retorno em desfile solo.

Lá se vão 25 anos desde que ela começou a passear pelas paragens da moda nacional. Com uma história que a levou a ser a grande jovem promessa daquela época, Fábia largou tudo de repente em 2010 (logo depois de um dos seus melhores desfiles no SPFW) para viver outras histórias. Hoje, mais centrada, vem construindo um trabalho artístico que permeia o vestuário mas não fica ali. Mais do que estilista, assumiu sua veia artística com força.

No sábado, dias antes do show na CDC, brindando com uma lata de energético que nunca acabou, ela falou sobre tudo — uma vivência terrível em Portugal, sua nova fase na moda, arte e Illuminati.

Eu tenho uma lembrança de que você não era muito fã de entrevistas. É uma memória inventada?

Talvez na época do HotSpot, do SPFW, eu fosse um pouco tímida, mas estou mais sem-vergonha. O esmeril da vida vai mudando a gente. Desmistifiquei muita coisa, um grande processo. Já que vamos fazer a terapia aqui, façamos completa. Teve o pré-Portugal, o pós-Portugal…

Vamos nos situar, então! Você deu uma desaparecida das modas depois do último desfile na Casa de Criadores.

Sim, fui para outra dimensão! Fiz esse último desfile em janeiro de 2017 e fui para Lisboa. Um movimento de ir embora mesmo, nem pensava em voltar. Fui tentar construir outra vida, ser artista por lá.

Foi uma crise ou uma fuga?

Hoje, acho que foi uma fuga. Mas na época era uma vontade de coisas novas. Sabe quando as oportunidades acontecem? Tinha acabado de conseguir a cidadania húngara e meu irmão começou a botar pilha para irmos embora. Eu já estava meio de saco cheio com as coisas que estavam rolando por aqui, com a minha empresa, algumas parcerias com profissionais horrorosos. Comecei a desfazer todos os nós e vendi tudo, vendi a casa e fui para Lisboa. Nunca tinha ido. Cheguei lá e já foi um impacto. Me vi naquela cidade caindo as pedaços e já pensei “onde fui parar?”

Não foi um impacto bom, então.

Eu sou muito da cidade grande, uma mulher da metrópole. Gosto muito de São Paulo, vivo na rua, minha pesquisa é na rua. Cheguei lá e entrei nessa outra dimensão. Tinha alguns alvos, mapeado agências de publicidade, o pessoal da ModaLisboa. Então comecei a descobrir a cidade, falar com pessoas e… já de cara, as portas não se abriram. Passou um ano e nada aconteceu. Comecei a desenhar, pintar, fazer minhas coisas e, nesse meio tempo, fazendo mil bicos. Trabalhei em restaurante, fiz cartazes, produção de videoclipe, mas não aconteceu nada do que previa.

No final de 2018, fechei um projeto com uma concept store de uma residência multicriativa. Ocupei o mezanino dessa loja, tinha um ateliê e trocava com as clientes que quisessem ilustrar as roupas, fazer uma certa customização. Ali, vendi para gente do mundo inteiro — a loja ficava em uma área turística, perto do Mercado da Ribeira: era gente do Japão, da Croácia, árabes. Foi bem, até; fiquei quase um ano nessa história.

E aí veio a pandemia.

Sim, quando tudo começou a melhorar, fiquei um ano presa. E nesse cenário, como todo mundo, fui pra dentro. E aí começou meu trabalho de esmerilhar tudo. Em paralelo, passei a fazer as minhas coisas com peças garimpadas. Tinha esse acervo e ia pintando. Comecei a fazer moletons, camisetas, caixas de papelão. Meio louca, pintando tudo o que via pela frente. Assim foi meu 2020 inteiro. Depois do lockdown, eu segui — focada em estudar, nas vendas que fazia, montei alguns open studio no apartamento que morava.

Ao mesmo tempo, ficava vendo todo mundo no Brasil, as coisas acontecendo e eu ficando louca naquele lugar, sozinha. Já tinham se passado quatro anos e nada acontecia. Já tinha tentado todas as possibilidades de trabalho — fui em escolas, fui na ModaLisboa, em quase todos os estilistas. E, tirando essa história da loja, não rolava nada. Sabe o que é nada? Aquilo foi mexendo por dentro.

Com o ego?

O ego, coitado, foi-se! Mas sobre dignidade mesmo, achar que eu não tinha valor nenhum naquele lugar. Eu pensava “mas gente, vou ficar aqui vivendo feito ermitona?”. Não fazia mais sentido. Tá, me inspirei, a cidade me revelou várias coisas sobre mim mesma. Foi um processo bonito, meio tragicômico, mas muito intenso, de transformação.

Porque acha que nada aconteceu?

Ah, não era para ser mesmo. Acho que a vida é assim. Você quer uma coisa e a coisa não te quer.

Não teve uma carga de xenofobia?

Acho que não, pelo menos não senti comigo — mas sei que tem. E, sei lá, eu estava lá como húngara, não sei se isso fez alguma diferença. Mas é pelo respeito mesmo com uma cultura que é completamente diferente.

E aí você veio embora de volta.

Voltei em junho de 2023 e foi outro processo. Você enfrenta um desconfiguração do ser, né? Estava lá como migrante, falhando, se desafiando e… que loucura que foi. De repente, decidi cortar. Em vinte dias, decidi e vim embora. Daí foi outra paulada, voltei para a casa dos meus pais, pois não tinha mais nada aqui. Foi um começar tudo de novo.

Quando você diz que ficava vendo as coisas acontecendo no Brasil, de lá… te parecia que aqui estava ótimo?

Não necessariamente, mas andava mais do que lá. Via os eventos, as coisas acontecendo. E é a nossa terra, não adianta. Temos uma coisa, de ventre mesmo, que pega. Quando estamos fora, fica um buraquinho. E ele foi ficando cada vez maior, me doía nos ossos! De verdade, nas últimas semanas eu tinha dores crônicas. Que merda é essa, sabe? No final das contas, era tudo psicológico. Só de voltar, já fui me resolvendo. Conseguir sair daquela Caverna do Dragão, ficar próxima da família, o calor humano dos amigos… Mas não me arrependo de nada, fiz o que foi preciso. Pois às vezes a coisa está tão emaranhada que mudar de perspectiva ajuda a resolver. Foi profundo, mas já era hora de voltar.

E a volta ao trabalho?

Depois de me situar, recomecei a pintar meus moletons aqui. Fui fazendo pesquisas, conhecendo gente nova, a coisa começou a vender… Tudo estava mudado, né? Ninguém sabe quem eu sou hoje em dia. E tudo bem, nunca me preocupei com isso. Eu queria criar, como sempre gostei de fazer. Antes, eu tinha uma visão de criação e de moda que não é a de hoje. No começo eu era uma querida, achava que a moda era linda. Já nos últimos desfiles da Casa de Criadores, lá depois de 2015, já não era mais a pessoa de 2010, quando saí do SPFW. Ali o mundo era outra coisa, não havia essa conexão que temos hoje, essa velocidade. Então a moda tinha essa coisa da estilista romântica…

Que nem faz mais sentido.

Nenhum, nenhum. Quebrou tudo, eu sou uma sobrevivente de guerra.  E o que vejo… por que estou fazendo isso, hoje? Porque é minha maior verdade, como artista mesmo. Preciso me comunicar. E se cheguei até aqui, quero também celebrar tudo o que confabulei comigo mesma. Tenho prazer em fazer. Acho que não teria esse prazer se tivesse que montar uma confecção de novo — ter equipe, modelista, costureira, marketing. Quanto mais independente, melhor. Não quero envolver tanto processo, tanta gente, tanta burocracia.

Então encontrei o André Hidalgo na exposição do Alexandre Herchcovitch no Museu Judaico [em março de 2024] e ele começou a falar para eu desfilar — você também estava lá e falou a mesma coisa. Então aquilo… fica na cabeça. Até a DM que você me mandou, quando ainda estava em Portugal e fazendo uma retrospectiva dos meus trabalhos no Instagram, me perguntando se eu ia voltar; isso também colaborou. Eu nem estava pensando concretamente nisso, mas é uma coisa que vai ficando na cabeça.

Não tinha uma coisa inconsciente ali?

Nem tão inconsciente, mas a todo momento! Era só o que eu queria.

Eu amo que você tem esse material todo organizado sobre o que fez.

Sou a louca da documentação, real. E olha que ainda perdi muita coisa, muitos HDs.

Mas quando você começou a fazer essa grande retrospectiva pelo Instagram, documentar toda a carreira, a impressão que dava era de um grande comeback. Por isso te perguntei na época!

A estrategista, né? Que nada. Estava só contando minha história. Mas também era um processo de ficar perto do coração. Mesmo inconscientemente, valorizar quem eu era, os meus feitos, meus êxitos. Tenho uma boa história. E estava num momento muito louco, realmente invisível em Lisboa. Juro para você, num nível de andar na rua e as pessoas esbarrarem em mim. Que loucura, isso começou a pegar muito pesado.

Você tem uma coisa de gostar de desaparecer né? Quando fechou a loja e saiu do SPFW, em 2010, foi a mesma coisa.

Sim, louca e imprevisível. Vai do oito aos oitenta. Até com amizades. A própria Vanessa [Monteiro], que está fazendo o styling do desfile, eu fiquei quase dez anos sem falar com ela. Essa história… Na época, isso foi em 2015, eu descobri que o mundo não era cor-de-rosa, que tudo é uma grande conspiração. Sempre fui investigativa em questões místicas, espirituais — e não sei como, caí num vídeo do YouTube sobre conspirações e os Illuminati. Não sabia de nada daquilo! Virei a pessoa louca da conspiração, não falava sobre outra coisa. Daí o filho da Vanessa, que era supercriança na época, me mandou uma piadinha qualquer — e aquilo me fez tirar satisfação com ela e não nos falamos mais por muito tempo. Maluca, né? Não tinha muito o que fazer da vida. Ainda bem que ela sabe como funciono. Imagina, olha o que estou falando… Mas tudo isso para dizer que eu era um pouco mais radical, de mudar tudo, querer mudar as pessoas. Hoje, nada me abala muito. Não quero perder totalmente essa forma radical de ser, mas a maturidade… a sabedoria da vida é justamente buscar esse equilíbrio. Não dá para ficar louca para lá e para cá, tem que saber administrar.

Estamos nos dispersando, volta!

Pois! De um ano para cá, a coisa se intensificou. Comecei também a ter um acompanhamento com uma plataforma de artistas, a Uncool Artist, que tem curadoria da Carolina Paz, uma artista brasileira radicada em Nova York. Ela criou essa comunidade de que faço parte desde abril e estamos estudando arte, mercado, desenvolvendo meu corpo de trabalho. Um corpo que ainda é muito filosófico, então fico escrevendo, refletindo sobre toda essa mudança profunda depois de sobreviver a como estava em Portugal. Depois de voltar, pude ter um pouco de paz e olhar para onde queria — entender o que é meu trabalho, o que quero como artista? Qual minha linguagem? Ainda estou descobrindo.

A arte… é difícil viver dela, né? Claro, se você for um artista comercial, que faz ilustrações, que dá um jeito de viver daquilo, é possível. Mas sou a chata conceitual, então são mil questões. Antes de ir para Portugal, fiz esse trabalho, Fantasia, que eram nove pôsteres de fisiculturistas espalhados por São Paulo. Foi um rito de passagem, o mais potente de todos os meus trabalhos. O primeiro pôster sobreviveu até o ano passado! E estava na Mooca, onde nasci, foi se deteriorando… enfim, mil simbolismos. Mas estou muito feliz com meu trabalho artístico. Lógico, não tem galeria, não é reconhecido ainda, nem tem uma expressividade. Mas está se construindo.


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Qual é essa sua pira com bodybuilders?

Cara, eu gosto muito. Sempre gostei, desde a faculdade eu já tinha as minhas revistinhas. Acho que é uma coisa com o gigante, com a materialidade do corpo, não sei… a mulher musculosa é uma coisa meio freak show. Gosto da estética. Lógico que, na minha inocência, eu nunca imaginei que aquilo era esteróide. Foi uma descoberta realmente recente. Mas sempre quis ter um corpo parrudo, gosto de praticar esportes. O bodybuilding é puramente uma linguagem estética. Lógico que é complexo, né? Mas, se tivesse outra função na vida, seria fisiculturista. E fora os looks! Principalmente até os anos 1990, quando era tudo muito mais real.

Você sempre se colocou como artista, não?

Sim, mas eu era uma artista… como posso dizer?

Meio naïf demais?

É, sim… não sabia direito o que era arte, não tinha maturidade. O meu negócio era moda, era fazer roupa, vender, criar, desenhar. Eu pirava, pois dei tudo ali naqueles primeiros anos de marca. Trabalhei muito, mesmo. Aqueles desfiles cheios de roupas, com linhas diferentes, acessórios, styling, pelo amor. Jamais faria tudo isso de novo. Não faz sentido acreditar tanto, querer mostrar tanto. Mas, na época, achava tudo certo, era o que eu queria fazer.

Queria mesmo ou estava se adequando à ideia de mercado que te venderam?

Lógico, queria atuar no mercado. Mas eram outros processos, outras realidades. Os showrooms de que participava, o próprio SPFW, tudo tinha uma proporção comercial grande. Mesmo assim, eu era pequena, com uma realidade de ateliê. Tinha bons produtos, boa comercialização — mas não tinha vida! Passei, dos 20 aos 30 anos, entregue ao sistema de moda, confecção, fazendo tudo com determinação, mas certa loucura. Eu não parava de trabalhar, queria criar. Adorava tudo aquilo, mas me doei muito.

Se arrepende?

Não. Talvez se tivesse uma maturidade diferente… mas não dá para saber como seria. E havia privilégios, né? Conquistei muito espaço, era fácil de conseguir patrocínios. Na época, precisavam da gente para ter alguma voz. Havia uma certa importância na figura do estilista. Hoje, querida… quantos, por exemplo, desfilam na Casa de Criadores? Eu nem sei todos os nomes. Antes sabia de tudo, hoje não dá para decorar, não consigo. E estou inclusa, né? Quem não me conhece, também fica no vácuo.

E, naquela época, eu tinha outro conceito de empresa e produção. Queria ser, sei lá, a Chanel! Ter o anel, o brinco, o sapato, o botão, tudo tinha meu F. Um pouco megalomaníaca. Hoje, como artista, já me diluí um pouco. Gosto de ser mais… camuflada, talvez? Lógico que com voz, mas não é sobre o meu nome, não é a pessoa, o F. É a mensagem, o moletom pintado. Menos é mais. Me tornei minimalista real, tenho dois garfos e três pratos. Faço lá a minha academia, vivo uma vida digna de arte.

Você passou recentemente pela Ellus. Foi bom?

Hoje, me coloco como artista para tudo. Então, como pesquisa artística, foi bom. Fui lá entender como é essa vida corporativa e… quase tive um surto. Tive que pedir para sair, foi uma vergonhinha. Mas como tenho essa licença poética, entenderam. Estava numa dinâmica muito louca, chegando às 9 da manhã e saindo às 9 da noite. Não fazia mais nada da vida, não ia na academia, não pintava, não pensava em nada. Uma coisa meio Brazil, o filme. Acabei com faringite, o corpo realmente tendo uma aversão ao ritmo. Percebi que não ia dar conta, agradeci e fui embora. Acho que foi minha última vez. Essa história de confecção ficou com a persona da fashion designer de 15 anos atrás.

Quando falou que passou dos 20 aos 30 trabalhando e fechou tudo de repente, em 2010, foi um grande breakdown?

Porra, fiquei louca.

Você disfarçou bem.

Nossa, você acha?

Publicamente, sim!

Na vida pessoal, virei uma loucona hardcore. Sabe quando você abre a gaiola e o passarinho voa, meio perdido, batendo em tudo? Quando baixei as portas da loja, fui embora do mesmo jeito, do mundo, do mercado. Mandei um e-mail para o Paulo [Borges] falando que não ia mais desfilar no SPFW. Imagina? Nem para falar ao vivo! Bebia todos os dias, um rolê meio Heleninha. Sem drogas pesadas, que não é a minha. Mas muita maconha, muito vinho, vivia disso.

Depois de fechar tudo, ainda me chamaram para trabalhar num espetáculo da Deborah Colker, Tatyana — que também foi um processo caótico. Não tinha condições psíquicas nessa fase; mas, hoje, é uma pérola na minha trajetória. Fiz figurinos para a Lovefoxxx, ali em 2012, depois comecei com a história de pintar moletons. Então fui para a Cravo & Canela como diretora criativa, fiz alguns desfiles com eles na Casa de Criadores. Ainda fiz mais dois experimentais depois desse contrato e fugi para Portugal. E aqui estou eu, agora vou apresentar um desfile! Bem mais centrada.

É o que, o seu terceiro retorno?

É, Jedi, né? A volta dos que não foram. O eterno retorno. Sísifo, é nós.

Como está esse desfile? Manda um spoiler, é upcyling?

É, mas… nem sei o que isso significa. Quer dizer, óbvio que sei, mas precisa desse nome? Aí vem a artista questionadora. É roupa, afinal. Não tem outro valor a não ser uma roupa. Mas estou com essa história de upcyling, apesar de não gostar de usar roupa usada. Não faço essa pesquisa em brechós. Tem algumas coisas que peguei do meu pai, do filho da Vanessa, coisas que trouxe de Portugal, do meu guarda-roupa. Mas a garimpagem vem do Brás, da C&A, Renner, enfim. É tipo uma colagem mesmo.

Já estava fazendo isso em pequena escala, fazendo vendas online, e comecei a me organizar para fazer quatro lançamentos. Fiz um em janeiro, farei outro agora, com esse desfile. Já estava nessa coleção antes de resolver desfilar, essa decisão foi logo depois da história da Ellus. Decidi mesmo faz… três semanas. Liguei para o André [Hidalgo] e bora.

Isso que é importante, não ficar muito na mente, nas confabulações. Bora fazer; o que deu, deu. Bora botar uns looks na passarela, umas questões para as pessoas pensarem um pouquinho — umas vão comprar a história, outras vão dar gargalhadas. Mas está ótimo, tudo certo. O importante é fazer.

É mesmo um exercício, sabe? Sem grandes pretensões. O André que me colocou para abrir a Casa de Criadores, não pedi nada disso. Nem sei se tenho público para um desfile solo! Mas estou indo com o coração aberto, humilde, para trocar com o pessoal de lá, com essa outra geração. Estou com disposição para trocar, com vontade de comunicar.

Vamos apresentar vinte looks que são superjovens, bem streewear, que é o jeito que me visto. No fundo, sempre fui meio mulamba; sou punk, da galera do skate. Naquele momento, lá no SPFW, eu me glamurizei um pouco — mas eram os anos 2000, né? Fazia sentido. Hoje, o streetwear reinou.

Inclusive, devo me gabar que, em 2013, quando comecei a fazer os meus moletons pintados, com mangas longas, isso era pré-Vetements. Quando eles chegaram, eu já estava nas revistas com aquela imagem.Depois disso, o mundo se transformou, né? A roupa ordinária virou luxo. Tá aí o Demna que fez o que fez, dez anos gloriosos na Balenciaga. Mudou todo o paradigma.

Rompi com meu passado, mas não renego. Amo tudo o que foi, consigo olhar e entender quem eu era. A idealista romântica, megalomaníaca, perfeccionista… Hoje, não tenho mais esses títulos. Sou livre. Ainda radical, mas de boa.

Está mais bem resolvida.

Sim. A gente sofre e muda, né? Perde gente, perde cachorro, vai deixando as coisas para trás e tudo traz outros sentidos. Na moda, é a mesma coisa. Esse desfile, eu até tinha pensado em fazer uma performance. Mas não ia comunicar o que preciso, que é produto, que é roupa, que é arte aplicada.

Esse desfile é um exercício de estética, de styling e de discurso. Mesmo a parte do upcycling: não é por estar na moda, mas é a forma possível hoje. Não tenho dinheiro e, se tivesse, saberia aplicar melhor. Não vou sair construindo todas as roupas do zero, contratando modelista, fazendo peças exclusivas como se fosse uma grande confecção. É pegar a pedra e tirar o leite. E, para mim, está ótimo! Vejo muito valor nisso, essas peças que garimpei e fiz essa alquimia. A beleza está nesse resgate. Não necessariamente vou comprar uma roupa para valorizar aquilo, posso pegar para rasgar e fazer outra coisa. Moda é isso, é poética e significado. A roupa é um mero transporte do discurso.

Tanto que não estou ali na Casa de Criadores como uma marca. Não tem mais aquilo de arara cheia. Estou atuando como artista independente que tem, na sua prática, um espaço para fazer vestuário.

E o desfile faz parte disso.

Sim, hoje sou um estúdio, não uma confecção. Isso também me permite uma pluralidade de discurso e de técnica. Posso fazer ilustração, pintura, instalação, vídeoarte… sou muito plural, sempre fui.

Acho que a megalomania agora é conseguir fluir dentro dessas infinitas possibilidades, mil ferramentas. Não preciso contratar mil pessoas, fornecedores de tecido, comprar aviamentos; tudo para poder fazer uma roupa. Quanto menos depender, melhor. Então, se tiver que pintar, eu pinto. Se tiver que costurar, costuro. Mas à mão, pois na máquina de costura, eu não sei.

Como não?

Nunca soube! Claro que entendo o processo, mas, quando é para sentar na máquina, preciso de outra pessoa. Estou aprendendo agora, literalmente. Não vou me tornar uma costureira, mas quero ter essa possibilidade para fazer essas colagens têxteis por conta própria.
 
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Você está fazendo tudo sozinha, nessa nova fase?

Sim. Sempre fui muito sozinha. Mesmo na época do auge, minha equipe era muito enxuta. Hoje, garimpo e uma costureira, que já trabalhava comigo antes, me ajuda. Peguei algumas modelagens que tinha, fizemos ali cinco ou seis peças. Todos os outros looks, são essas peças que já tinha no meu acervo que compro para pintar e outras que fui atrás para criar essa linguagem.

O artistwear vem daí?

Comecei a ter essa ideia de narrativa. É roupa de artista pois é assim que me visto, literalmente. Jeans, jaqueta puffer, moletom Não tem roupa show nesse desfile. Hoje, é tudo show, né? Tudo passou a ser figurino. São ombreiras imensas, mil brilhos, essa estética bastante elaborada que vemos por aí. Até por conta da celebridade, da forma que a música demanda, a montação dos figurinos. Eu não estou vindo com montação, de verdade. É roupa básica, streetwear, do meu jeito.

E essa história de World Expo 2025, título da coleção?

Tenho muito essa coisa com a Revolução Industrial, o fim do século. Peguei essa referência das Feiras Mundiais que aconteciam na época. A troca era outra, não havia a facilidade do contato com outras culturas, até de uma maneira fetichizada. Então faziam essas feiras com representações do mundo, que eram grandes fantasias, mas realistas. Imagina chegar no pavilhão da Índia ou da França, encontrar réplicas daqueles lugares feitas de fibra de vidro, em tamanhos colossais, que seriam destruídas depois. Então tem essa materialidade muito forte e, ao mesmo tempo, a disruptura do sistema, a coisa do vapor, do proletariado. Como tudo aquilo começou a se construir, a mão de obra humana, são coisas que mexem comigo.

Quis falar um pouco disso também, fazer um contraponto. Para que tanta parafernália para falar do novo, do progresso, que logo vai ser desmontado? Como hoje, que é tudo para foto — você entra na loja, tira uma foto e nem precisa comprar. Como o desfile que, na semana que vem, provavelmente ninguém vai se lembrar mais. Não é aquela coisa de antigamente, que o assunto fervia por meses.

É uma morte da imagem?

Hoje, eu faço tudo para mim. Antes, também, mas era muito mais para os outros. É uma contemplação e espírito… do tempo, da memória. O que é o tempo para cada um? Imagina, estamos falando sobre quando comecei, estreando na Casa de Criadores há 25 anos. Lembro como se fosse hoje. Nem faz tanto tempo assim, mas, ao mesmo tempo, faz. É olhar o século passado, ver como chegamos aqui. E ver, na verdade, o que é a moda? De que vale tudo isso? De que vale a passarela se amanhã todo mundo já esqueceu?

Você se sente novamente inserida no sistema?

Não sei. Acho que não, mas nem tento. Sou uma outsider, apesar de ter o acesso aberto. Mas não forço a onda de nada. Não sinto que preciso ser da turma da moda, estar nos lugares, pedir para ser valorizada. Eu já me valorizo, obrigada.

Por falar em memória: você faz parte de uma geração que acabou… esquecida. A turma do HotSpot, parece que aquilo se perdeu.

Ah, mas ninguém vai se lembrar. Quem lembra mesmo são os jornalistas.

Tá, mas vocês tiveram um momentum, né? Uma certa importância. As pessoas não continuaram, nem a memória. Tudo foi engolido, não acha?

Havia um espaço para ter brilho, talvez? A memória não continuou, mas eu também não: não quis trilhar um caminho de ascensão. Fui para um caminho radical, escolhi experimentar a vida de outras formas. Eu não ligo, sério mesmo. Tenho clientes, atraio pessoas que gostam do meu trabalho — mesmo que comprem uma vez só e me esqueçam. Tendo trocas e afetos, está tudo certo.

Não precisa de reconhecimento?

O que é o reconhecimento hoje, gente? Tudo bem, você tem ali a Piet, a Mondepars, por exemplo, que estão construindo algo. Mas é tanta marca, tanta gente criando, tanta informação… não se tem controle mais. É necessário um processo pessoal de edição, de escolha. Antes havia uma troca maior, eu acho. Hoje, a construção é mais interna, você acaba pegando aquilo que realmente importa para você, pois não é possível abraçar tudo. No HotSpot, éramos nove estilistas e era isso.

Era uma bolha.

Sim, como chamavam… uma incubadora!

Mas que incubou para onde, né?

Como tudo no mundo, tudo, tudo, é fantasia. Tudo é de mentirinha. Criamos coisas que não tem estrutura, que não têm sistema. Fora que incubar nove pessoas, cada um de um jeito… Não vai funcionar igual. Cada um vai pegar seu caminho.

E no seu caminho de agora, nesse retorno, está confiante com a sua moda?

Estou supertranquila. Tem look que vão falar “nossa, que audácia”. Lógico que quero fazer meu papelzinho, né? Cutucar a onça um pouco. Meu tom está mais afiado. Antes, era tudo muito lindo, lúdico, romântico, místico… Hoje tem um zumbizinho aqui, um mendigo ali, uma coisa mais realista. Por exemplo, a arte povera: eu amo. Teve até uma exposição imensa na Bourse de Commerce, aquela história do Pinault, valorizando a arte povera. São tendências, até a própria Balenciaga do Demna entra nisso. É real, é realista, é dia a dia.

Quem quiser sofisticação, opulência, tudo bem, seja feliz. Mas não é a minha vida. Vivo outra coisa, vivo livre, não consumo quase nada. Nem TV eu tenho. Seleciono muito bem a informação que quero. Sem ficar neurótica também, mas vou me inspirando em serendipidade, coisas que aparecem. Quanto menos influência dos Illuminati, melhor. Porque é real, né? Depois da loucura de ficar imersa nessas histórias, você vê que eu realmente tinha razão.

Tinha mesmo?

É isso, gente! Vivemos no mundo da maçonaria, os maçons mandam no mundo.

Para!

É verdade! Quem viver, verá.

E não dá para viver fora da conspiração?

Não é possível, pois viemos para ser engolidos. Mas através da consciência, do trabalho íntimo, você consegue ter a compreensão disso e não se deixar dominar, simplesmente.

Ah, mas pode ser uma escolha.

Com certeza, você pode se deixar ser dominado, se quiser. Eu, não quero.  

...

22.07.2025

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Calma é
Eduardo Viveiros.


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